Carta aberta à dona da maior imaginação de toda a província da Ilha do Príncipe Eduardo
POR FRANCISCA PIRES
Querida Anne de Green Gables,
Ou seria melhor cumprimentá-la por outro vocativo? Talvez “querida magnífica idealizadora de extraordinárias convicções, Anne Shirley Cuthbert”? Eu não sei você, mas a mim me parece digno. Afinal, você mesma disse que para expressar grandes ideias devemos usar grandes palavras, e seu amor por elas ficou claro desde que sua história começou a nos ser contada. Dito isto, peço perdão, portanto, por usar um vocativo tão curto, mas justifico minha imaginação limitada ao fato de que vivenciar suas aventuras e acompanhar seu crescimento me dá a leve impressão de que já somos próximas.
Mal posso imaginar o quanto você sofreu durante sua vida. Primeiro, a dor de perder os pais ainda bebê, o que a privou da sensação de ser amada como filha. Segundo, teve que ser levada para um triste orfanato, onde sofria bullying e era obrigada a trabalhar como escrava para famílias que não a tratavam com o respeito que merecia. No entanto, pequena Anne dos cabelos de fogo, alegra-me lembrar do seu semblante ao ver Mattew pela primeira vez. Ele estava ali naquela estação de trem para te buscar, levar para a nova casa e te apresentar às milhões de possibilidades que você teria a partir daquele dia. Possibilidades essas que você imaginou durante boa parte de seus treze anos, enquanto vivia ainda sozinha no mundo. Você não estava mais só, e naquele momento todos nós, estranhamente, suspiramos aliviados com você.
Seu primeiro encontro com Marilla não foi dos melhores, sabemos disso. Ao imaginar um casal idoso de irmãos que decidiram adotar uma criança, você não esperava que o real interesse seria adotar um garoto apenas para ajudar no trabalho pesado da fazenda. Aquilo não fazia sentido. Diante da situação, você se viu determinada a provar que poderia ficar naquela fazenda em Green Gables e, por mais que seu doce coração esperasse ser amada como filha, aquela era uma oportunidade que não poderia ser desperdiçada de forma alguma. Se era de trabalho que eles precisavam, era a mão de obra de uma garotinha magricela que eles teriam. Marilla foi dura com você no início, mas a verdade é que a vida é quem havia sido dura demais com ela, e por isso, desde então, você mesclou suas travessuras e infindáveis formas de arrumar confusão com a obediência, carinho e atenção próprias de uma filha. Logo, os irmãos passaram a te amar como tal.
Ah, e sobre sua iniciação escolar? Por essa, nenhum de nós esperávamos. Você estava tão aflita e com medo de não se encaixar que mal percebia o quanto sua personalidade tinha a acrescentar aos meninos e meninas que agora estudavam com você. Muitas amizades incríveis foram seladas, mas todos nós sabemos que a escola é um recorte da sociedade em que se está inserido. Por isso, naquele contexto de fim do século XIX, aquele era um ambiente hostil, machista e opressor: um lugar capaz de arruinar até os mais consistentes sonhos, como os seus. Porém, você encarou de frente e, mesmo com algumas questões de autoestima relacionadas a seu cabelo, corpo e rosto, você superou todas as humilhações a que fora imposta e provou a todos que a órfã feia, na verdade, era dona de uma inteligência ímpar, um conhecimento de mundo muito avançado para a idade e, principalmente, um coração puro e bondoso.
Gostaria que soubesse que sua vida não é um perfeito cemitério de esperanças enterradas, como disse certa vez. Suas esperanças estão vivas e são elas que te mantêm viva. Anne com E, você é genuína. A dor do outro te inquieta e você nunca suporta ver alguém em sofrimento ou sequer há agido alguma vez por maldade. Vive em uma época tão conservadora e retrógrada, mas mesmo assim luta por todos os tipos de equidade, respeita as diferenças e ama todas as formas de vida – a propósito, sua raposa é linda. Portanto, princesa Cordélia, não pense que só conseguirá ser professora no futuro, pois você já ensina sobre sonhos, perseverança e empatia desde que pisou na província da ilha do príncipe Eduardo pela primeira vez. Obrigada por ser um espírito amigo e nos guiar no caminho do amor.
*A carta aberta faz alusão à série da Netflix que relata as aventuras de uma órfã apaixonada pelo mundo das palavras. Ela é adotada por um casal de irmãos e vai morar em uma pequena província do Canadá, no fim do século XIX.
“Anne with an E” tem atualmente duas temporadas, sendo a primeira com sete episódios e a segunda com dez. É baseada no livro de Lucy Maud Montgomery, chamado “Anne de Green Gables”, e foi adaptada pela escritora e produtora Moira Walley-Backett. A garota Anne é interpretada pela jovem atriz irlando-canadense Amybeth McNulty.
Querida Anne de Green Gables,
Ou seria melhor cumprimentá-la por outro vocativo? Talvez “querida magnífica idealizadora de extraordinárias convicções, Anne Shirley Cuthbert”? Eu não sei você, mas a mim me parece digno. Afinal, você mesma disse que para expressar grandes ideias devemos usar grandes palavras, e seu amor por elas ficou claro desde que sua história começou a nos ser contada. Dito isto, peço perdão, portanto, por usar um vocativo tão curto, mas justifico minha imaginação limitada ao fato de que vivenciar suas aventuras e acompanhar seu crescimento me dá a leve impressão de que já somos próximas.
Mal posso imaginar o quanto você sofreu durante sua vida. Primeiro, a dor de perder os pais ainda bebê, o que a privou da sensação de ser amada como filha. Segundo, teve que ser levada para um triste orfanato, onde sofria bullying e era obrigada a trabalhar como escrava para famílias que não a tratavam com o respeito que merecia. No entanto, pequena Anne dos cabelos de fogo, alegra-me lembrar do seu semblante ao ver Mattew pela primeira vez. Ele estava ali naquela estação de trem para te buscar, levar para a nova casa e te apresentar às milhões de possibilidades que você teria a partir daquele dia. Possibilidades essas que você imaginou durante boa parte de seus treze anos, enquanto vivia ainda sozinha no mundo. Você não estava mais só, e naquele momento todos nós, estranhamente, suspiramos aliviados com você.
Cena de Anne with an E (Foto: Divulgação) |
Ah, e sobre sua iniciação escolar? Por essa, nenhum de nós esperávamos. Você estava tão aflita e com medo de não se encaixar que mal percebia o quanto sua personalidade tinha a acrescentar aos meninos e meninas que agora estudavam com você. Muitas amizades incríveis foram seladas, mas todos nós sabemos que a escola é um recorte da sociedade em que se está inserido. Por isso, naquele contexto de fim do século XIX, aquele era um ambiente hostil, machista e opressor: um lugar capaz de arruinar até os mais consistentes sonhos, como os seus. Porém, você encarou de frente e, mesmo com algumas questões de autoestima relacionadas a seu cabelo, corpo e rosto, você superou todas as humilhações a que fora imposta e provou a todos que a órfã feia, na verdade, era dona de uma inteligência ímpar, um conhecimento de mundo muito avançado para a idade e, principalmente, um coração puro e bondoso.
Gostaria que soubesse que sua vida não é um perfeito cemitério de esperanças enterradas, como disse certa vez. Suas esperanças estão vivas e são elas que te mantêm viva. Anne com E, você é genuína. A dor do outro te inquieta e você nunca suporta ver alguém em sofrimento ou sequer há agido alguma vez por maldade. Vive em uma época tão conservadora e retrógrada, mas mesmo assim luta por todos os tipos de equidade, respeita as diferenças e ama todas as formas de vida – a propósito, sua raposa é linda. Portanto, princesa Cordélia, não pense que só conseguirá ser professora no futuro, pois você já ensina sobre sonhos, perseverança e empatia desde que pisou na província da ilha do príncipe Eduardo pela primeira vez. Obrigada por ser um espírito amigo e nos guiar no caminho do amor.
Com carinho e admiração,
Todos os seus alunos.
Pôster de divulgação da série da Netflix Anne With an E (Foto: Divulgação) |
*A carta aberta faz alusão à série da Netflix que relata as aventuras de uma órfã apaixonada pelo mundo das palavras. Ela é adotada por um casal de irmãos e vai morar em uma pequena província do Canadá, no fim do século XIX.
“Anne with an E” tem atualmente duas temporadas, sendo a primeira com sete episódios e a segunda com dez. É baseada no livro de Lucy Maud Montgomery, chamado “Anne de Green Gables”, e foi adaptada pela escritora e produtora Moira Walley-Backett. A garota Anne é interpretada pela jovem atriz irlando-canadense Amybeth McNulty.
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