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Flicts: autoconhecimento e aceitação de nossa singularidade

A obra do cartunista Ziraldo completa meio século de lançamento e ainda possui muito a nos ensinar

POR LUCIANO VAGNO


Capa do livro Flicts (Imagem: Reprodução)
O que fazer quando você não se encaixa no mundo? Você tenta, tenta e tenta, porém acaba sempre sentindo-se sozinho e inútil, de modo que parece não haver um lugar para chamar de seu. Um lugar onde você possa, simplesmente, ser você. Assim era a vida de Flicts, protagonista de um dos livros mais famosos de Ziraldo. A história da cor Flicts é semelhante à de outras pessoas que precisam tomar uma atitude: conhecer a si.

Dentre as tantas características possíveis que existem no dicionário, Flicts é apresentado como triste, frágil, feio, aflito, solitário, porém, também, raro. Ele não tinha as mesmas qualidades que as outras cores (forte, luminoso, pacífico), nem pintava o mundo como elas. No entanto, tinha uma grande qualidade que os outros nem mesmo sabiam: Flicts não desistia fácil.

Nosso personagem, da mesma forma que tantas pessoas por aí, estava acostumado a ouvir diversos nãos diariamente, a ouvir que não servia para nada; era subestimado, julgado e, pelos outros, limitado. Tudo o que ele mais almejava era ter um companheiro, um amigo. Contudo, ninguém o queria por perto.

Para onde Flicts olhava havia alguma cor. Tudo tinha cor. Céu, mar, nuvens, flores, pássaros, até a chuva; tudo tinha algum tom. A única coisa que era flicts era ele mesmo: o triste, frágil, feio, aflito, solitário – e raro – Flicts.

Certo dia, ele viu a oportunidade perfeita e foi, novamente, pôr em ação seu plano de conquistar uma amizade. Depois de uma cinzenta chuva, as outras cores se juntaram para brincar, conversar, socializar. E lá foi o Flicts. “Deixa eu ficar. Deixa eu ser. Deixa que eu fique”, disse a cor. 

Infelizmente, ninguém sequer o olhou. Flicts só desejava que os outros lhe conhecessem, entretanto, ouviu frases como “Não tem lugar pra você”; “Vai procurar um espelho”; “Não quebre uma tradição” e “Por favor, não vá querer quebrar a ordem natural das coisas”.

Depois de se recuperar de mais esse fracasso, Flicts resolveu sair pelo mundo procurando seu lugar, ou ao menos alguém que o quisesse por perto. Em todas as suas tentativas, ouviu, de diversas maneiras, “Não há vagas”. Ninguém lembrou-se dele para colorir ao menos uma simples estrelinha, em alguma bandeira de algum país por aí. 

Talvez qualquer outra cor, estando no lugar de Flicts, já tivesse desistido, revestido de negatividade e entregado os pontos. Contudo, ele tinha uma qualidade que superava todas as demais: raridade. E assim, sozinho, Flicts prosseguiu. 

No entanto, um dia Flicts parou. Parou de buscar nos outros um motivo para ser feliz. Ele parou e olhou pra longe. Pode ser que alguém estivesse lhe observando e se perguntando “Para onde ele está olhando? Não tem nada ali”, todavia a cor continuava a mirar o infinito. Flicts estava olhando para dentro de si. Começou, então, a flutuar, e a subir cada vez mais alto, até chegar ao ponto onde ninguém mais podia lhe ver.

Flicts, que tanto procurou se encaixar onde não cabia, onde não era bem-vindo, onde os outros só viam seus defeitos, lembrou que ainda era raro; reconheceu que não era igual aos demais e isso era uma coisa boa.  O triste, frágil, feio, aflito, solitário – e raro – Flicts se descobriu.

A Lua, às vezes, pode parecer azul, vermelha, amarela, “mas ninguém sabe a verdade (a não ser os astronautas – aqueles que realmente a conhecem –) que de perto, de pertinho, a Lua é Flicts”. Flicts encontrou seu lugar. Flicts se amou.

Pode ser que ainda percamos muito tempo tentando nos ajustar aos padrões, esforçando para ser aceitos, ou mesmo buscando encaixar onde não existimos. Focamos (às vezes, com a “ajuda” de alguém) em nossos defeitos e erros. Contudo Flicts vem ensinar algo: nossa singularidade é linda, é rara. Ensina, ainda, que o nosso lugar é onde nos sentimos bem e onde somos livres para ser quem somos, e nem todos vão perceber nossa real beleza, porém aqueles que realmente se dispuserem a nos conhecer – como os astronautas – vão ver o quão raro somos.

Assinatura do astronauta Neil Armstrong confirmando que a Lua é Flicts (Foto: Reprodução)

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