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Sessão debate: uma análise mais aprofundada sobre o enredo e os personagens da série Você, da Netflix


A série que trouxe debate entre romance e relacionamento abusivo, agora renovada para segunda temporada, tem muito mais a ser analisada para além do serial killer


Por Ana Flávia Sanção
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Divulgação. Foto: Lifetime. 


[CONTÉM SPOILERS]

Disponível desde o dia 26 de dezembro de 2018, a série You (Você, em português), parceria da Netflix com a Lifetime, deu o que falar. O enredo conta a história do vendedor de livraria, Joe Goldberg (Penn Badgley), que se apaixona à primeira vista por Guinevere Beck (Elizabeth Lail). Mas o que deveria ser uma história de amor se torna um jogo de obsessão violento e abusivo, levando Joe aos extremos da psicopatia para conseguir o amor de Beck.

O thriller, baseado no romance de mesmo título de Caroline Kepnes, tornou-se polêmico após uma série de pessoas afirmar que o comportamento sádico de Joe nada mais era do que uma resposta natural ao amor que sentia por Beck. O debate aumentou ainda mais com a declaração da atriz de 14 anos Millie Bobby Brown, estrela da série Stranger Things, de que Joe fazia tudo aquilo “porque ele a amava”. A repercussão do caso foi tanta que a Netflix produziu um pequeno vídeo educativo orientando sobre os sintomas de relacionamentos abusivos e violentos. No anúncio da segunda temporada da série, o ator XX ainda retoma o tema através de um trocadilho brasileiro ao falar: “Não era amor. Era cilada”.




Está claro que, tanto no livro (e faremos, a seguir, algumas comparações e detalhamentos sobre a obra de Kepnes) quanto na série, nada sobre Joe Goldberg é saudável. No início, as belas palavras descritivas de Joe sobre Beck e seu interesse repentino nela podem parecer românticos e apelativamente carinhosos, porém logo fica perceptível que algo está errado quando ele começa a persegui-la, não somente online, mas também na vida real, ao ponto de observá-la através da janela de seu apartamento e masturbar-se, no meio da rua, durante suas vigiais diárias.

(Apesar de este artigo não ser direcionado à análise técnica do seriado, vale um pequeno comentário de exaltação diante da atuação incrível de Badgley. A caracterização de Joe desenvolve de forma incrível durante a série, aos poucos revelando o psicopata totalmente compulsivo que ele realmente é.)

Mas há outros pontos a serem explorados sobre Você, além de Joe Goldberg. Para isso, usarei as perguntas para análises e discussões, as quais estão disponíveis na edição de bolso do livro da editora Pocket Books, da Simon & Schuster, Inc. (edição em inglês). Tanto a série como o livro serão postos em análise.


Que tipo de impressão se tem ao conhecermos Beck através do ponto de vista de Joe? Sua narração é confiável?

No seriado, Joe se mostra extremamente observador desde o início. Tanto no livro quanto na série, suas primeiras impressões de Beck nos levam a crer que, sim, ela estaria flertando com ele desde o momento em que entrou na livraria. Conforme a história avança, no entanto, podemos ver a descrição das ações dela se tornarem cada vez mais confusas e moduladas para que, no fim das contas, Joe se convença de que está realmente fazendo aquilo porque ela precisa e, acima de tudo, porque ele a ama.

Uma das grandes diferenças entre o livro e a série, dada maior liberdade literária, é a da caracterização de Joe. No romance, há uma descrição maior de quem seria o personagem. Ele não é apenas obcecado pelas suas namoradas e ex-namoradas - Joe é obcecado por tudo aquilo que o envolve. Temos um relance desse comportamento na relação dele com o garotinho Paco (Luca Padovan), mas, no livro, podemos ver que essa sua característica envolve qualquer coisa ao seu redor - os filmes que gosta, os livros, seu apartamento, as músicas que o agradam, a comida. Tudo se distorce ao seu redor e Beck é uma parte inevitável.

Conforme o enredo se desenvolve em ambos os casos, Joe pinta Beck como uma donzela em perigo, com tendências promíscuas, que precisa dele para salvá-la, para guiá-la. Na série, temos a chance de ver, em alguns momentos, o ponto de vista de Beck sobre sua própria vida e é notável o quanto ela não sabe o que fazer dela nem para onde conduzi-la; também fica claro, no entanto, que é um problema interno que ela precisa resolver sozinha. Beck não precisa de Joe. Ela precisa de si mesma.


O que Joe e Beck viram um no outro.

Não acho que Beck tenha visto algo em Joe inicialmente. Mesmo que estivesse flertando, pessoas flertam o tempo todo sem realmente estarem interessadas, especialmente jovens universitários. O que era mais um homem bonito no dia-a-dia de Beck, cercada de amigos da alta sociedade de Nova York? Pelo o que vimos de sua vida particular, era costume dela ter vários encontros casuais, como qualquer outro jovem adulto da sua idade.

Joe, ao contrário, vê Beck como uma garota bonita e interessante, mas esguia. A vida virtual de Beck, aberta e divertida, mostra uma realidade que não acontece no dia-a-dia. Ao persegui-la, Joe começa a notar pontos de vulnerabilidade em Beck e os usa de forma a manipulá-la para que ela ache que precisa de um salvador, de um príncipe. Boa parte da obsessão de Joe por ela vem de que, em sua cabeça, Beck precisa dele. Ele seria, então, o único a salvá-la dos potenciais perigos de uma vida que nem sempre era feliz - mas isso não é algo especial. A vida de ninguém é perfeita e nada é sempre como queremos. Beck, no fim das contas, não era nenhum pouco diferente de qualquer outra mulher de vinte e tantos anos que aspira ter uma carreira de sucesso e um círculo social.

É unicamente a ideia de que há algo de errado de forma constante que faz Joe perseguí-la. Quanto mais Beck compra a ideia de que sua vida não é boa e de que ela necessita dele para ajudá-la, mais ele se convence de ser o herói e mais suga o que resta de positivo nela. A maior prova disso é quando Joe escuta a gravação de sua sessão com o terapeuta e ela diz que não precisa dele, que precisa de tempo. O desinteresse de Beck quebra Joe e o faz se afastar fisicamente, apesar de ainda persegui-la pela internet, pois, no fundo, ele ainda a acha dependente dele.

O relacionamento deles no livro, diferentemente da série, não se desenvolve tanto. Depois da primeira noite de sexo deles, Beck desaparece e não volta mais. Antes disso, nada demais acontecera. Não havia uma forte ligação. Eles só voltam a ficar juntos depois da morte de Peach (Shay Mitchell) e ainda assim não foi muito tempo, poucas semanas. E então Beck morre e Joe está obcecado por outra garota novamente. No fim das contas, Beck viu em Joe uma âncora para sua solidão e necessidade de atenção, nada mais que isso, e Joe achou alguém a quem poderia manipular emocionalmente.


Opinião inicial sobre a personalidade de Beck.

Não há nada de especial ou incrivelmente fascinante sobre Beck. Não que isso seja ruim, mas, tanto na obra literária quanto na televisiva, Beck é uma garota completamente normal. Nenhuma aspiração diferente, nenhum talento diferente, nada que a faça se destacar além da beleza, que chama atenção das pessoas ao redor dela. Em nenhum momento, Joe a descreve como intrigante. Esquiva, sim. Difícil, sim. Mas sempre com um tom de piedade.

Ela não é nada mais do que uma estudante de mestrado que teve uma adolescência complicada pela perda do pai e encontrou refúgio no mundo maravilhoso dos ricos de Nova York, achando que ali iria finalmente encontrar e ter tudo que sempre quis. Tinha amigos bons e outros nem tão bons - olá, Peach - e problemas com dinheiro e bloqueio criativo. Dependência emocional - Benji! (Lou Taylor Pucci) -, mas muito clichê. Se nada tivesse acontecido a Benji, acredito que ela o teria superado de qualquer forma. Nada incomum, nada que precisasse de ajuda.

O ponto principal da personalidade dela é, no entanto, a facilidade de deixar-se manipular. Mesmo antes de Joe, Beck era peão nas mãos de Peach, de Benji, de Annika (Kathryn Gallagher) e Lynn (Nicole Kang), do pai e do professor do mestrado. Isso caracteriza alguém que sempre está tentando agradar àqueles a quem considera superior e se contenta em ser usada como bicho de estimação por essas pessoas. No fim da série, Beck se mostra mais forte e mais decidida em ter uma personalidade própria e tomar as decisões por si mesma; principalmente - que irônico - depois de ficar presa dentro da jaula.


A constante mudança de opinião de Beck quando estava perto de Peach. Ela queria atenção ou só estava se redescobrindo?

Já debatida a personalidade fraca e modelável de Beck, vamos falar de Peach Salinger. Peach é pintada, inicialmente, como a Rainha do Baile. Beck é a melhor amiga não tão legal, a sombra. Peach manda e desmanda em Beck. Na série, mostram como Beck é devota à sua melhor amiga. Mas o relacionamento dela e de Joe, ainda assim, não é tão atrapalhado por Peach como no livro. No escrito, temos interrupções constantes e longas da amiga de Beck. Passada a página 200 (da edição que citei anteriormente), o relacionamento mal andou direito, e isso por culpa de Peach.

É, ela também é uma stalker obcecada por Beck. Não uma assassina, mas poderia facilmente ser, caso fosse necessário. De todo jeito, há um padrão na forma como ela trata a mocinha da série - é o mesmo tipo de manipulação que Joe usa, embora Peach detenha mais poder sobre Beck devido ao histórico das duas. Salinger se põe numa posição superior à Guinevere e, obviamente, ela a compra. Por isso, sempre que as duas estão em um ambiente comum, Beck tende a ceder aos gostos de Peach.

Durante a série, há pistas que mostram que Beck tem um pouco de noção do controle que Peach detém sobre ela, mas não faz nada para impedir isso, até gosta. No livro, é mais difícil perceber, por ser totalmente a visão de Joe narrando.

O relacionamento de Joe e Minty.

Karen Minty (Natalie Paul) nunca iria durar com Joe. Diferente de Beck, Karen era o tipo de mulher bem resolvida. Joe não conseguia fazê-la se sentir menor, nem desprotegida, nem coitadinha. A obsessão dele está diretamente relacionada ao controle que exerce sobre aqueles que acha que são menores que ele, problemáticas, indefesas. Karen nunca foi assim. E ela, apesar de tudo, conseguia ver através dele.

A maior prova disso foi quando Joe terminou com Karen. A reação dela foi totalmente tranquila, sem lágrimas, de cabeça para cima. Ele ficou chocado, esperou que ela demonstrasse fraqueza, submissão, choro. Karen simplesmente saiu do apartamento e mostrou que não precisava dele. E Joe, incrivelmente, aceitou, afinal, naquele momento: a princesa em perigo dele finalmente voltara para suas garras.

Achei incrível que Karen perdeu um pouco do orgulho para alertar Beck do que estava por vir. Ela sentiu, de alguma forma, que Joe não era alguém estável. É claro que ela parecia uma ex-namorada com orgulho ferido quando encontrou com Beck, mas o aviso dela era real. Beck deveria ter aprendido com ela.

Na literatura, Karen é um pouco diferente. Ela é mais protetora e cuidadosa com Joe, beirando a típica futura dona de casa, que planeja uma casa grande, dois filhos e dois cachorros. Nota-se que Joe precisa dominar suas parceiras de uma forma doentia e paternal, e ele não se vê dessa forma com Karen. Ela é essa mesma mulher determinada e cheia de si da série, mas existe algo a mais, algo mais tradicional. Joe não gosta das tradicionais. Ele gosta das emocionalmente instáveis, para que sua dominação realmente funcione.


Joe pensa que assassinato é um ato de compaixão para com pessoas miseráveis. E, apesar de todas as coisas que fez, como ele saiu impune?

É incrível como ele saiu impune de tudo sem ser considerado culpado. Joe não era cuidadoso com nada. Qualquer bom investigador teria achado estranho as pessoas mais próximas a Beck terem desaparecido/morrido, inclusive a própria, durante o tempo que ela esteve com Joe. Não é algo que se passe despercebido num inquérito policial.

Marcas de sangue e cabelo por todos os lados, familiares preocupados (cadê a família de Benji?! Será que ninguém sentiu falta de um contato direto com ele que não fosse por rede social?), digitais, a própria jaula. Ainda que de cara ele tenha conseguido montar um falso suicídio para Peach, havia o pote de urina na casa dela (que exame de DNA demorado!) e os lugares que ele teve contato na casa. Na própria Peach, havia manchas de dedos e até sangue de Joe. Pior ainda é Benji. Benji vinha de família rica com muitos amigos importantes. Ninguém desse tipo simplesmente some sem que as pessoas à sua volta se deem conta disso.

Os desaparecimentos de Beck e Benji possuíam, inclusive, pontos em comum. Utilização de redes sociais sem interação direta alguma, desculpas superficiais para sumirem da vista das pessoas. O texto de Beck não me parece o suficiente para ser uma prova de assassinato. Não é forte o suficiente, Beck era uma escritora, e onde estão as provas físicas? Arma do crime, sangue, cabelo, pele morta. O álibi do Dr. Nicky (John Stamos)? Ele não era casado com família? Se ligassem esses pontos com a morte de Peach e o sumiço sem explicação de Benji, claramente haveria uma ligação. (Falando em ligação, pessoas não rastreiam celulares mais? Ninguém hoje perde um telefone sem antes tentar achá-lo pelo GPS).

Sem falar no desaparecimento de Ron (Daniel Cosgrove), namorado da mãe de Paco e, anteriormente, o sumiço de Candace (Ambyr Childers) e do produtor dela, totalmente ligados à Joe com situações parecidas demais para serem ignoradas no caso de ele ser alvo de investigação.

Não sei, de verdade, como Joe nunca foi questionado diretamente pela polícia. Ele foi descuidado demais. Demais. Havia evidências demais por todos os lados. E não fica claro se serão esses buracos que o levarão à cadeia no fim da série ou se somente foram falhas de enredo gravíssimas que ninguém se preocupou em consertar ou explicar.

No livro, as morte são um pouco diferentes, principalmente a de Peach. [Spoiler] Peach é morta a pedradas e jogada no mar com pedras nos bolsos do casaco e o corpo é achado semanas depois em Long Island. É dado como suicídio, mas Joe se preocupa. De novo, nada substancial. Parece que nada aconteceu. Beck é morta por enforcamento, mas, fora isso, todo o resultado da morte é basicamente similar.


Na cabeça de Joe, os personagens encarcerados na gaiola se tornavam pessoas melhores, consequência do que ele mesmo passou quando era mais novo. Mas ele deixaria Benji e Beck saírem de lá, como ele saiu?

Não dá para negar que a história de vida de Joe é barra pesada. Abandonado pelos pais, praticamente adotado por Mr. Mooney (Mark Blum) e, durante sua adolescência, muitas vezes tratado por ele como um animal a ser domado. Como Joe nunca teve referência parental, nem educação ou carinho, é normal que ele tome aquilo ao que foi submetido como algo direito e certo. Acredito que o ambiente influencia as pessoas, mas em nenhum momento é justificável aplicar suas frustrações em cima dos outros. E, em nenhum momento, acredito que Joe deixaria algum dos dois sair da jaula. Principalmente Benji, pois ele não tinha influência alguma sobre o psicopata. A obsessão de Joe por Benji não era proteção, mas sim conhecimento. Joe queria entender Benji ao máximo, o que supostamente havia atraído Beck para ele, e depois disso, Benji seria totalmente descartado. Com Beck, ela ainda poderia sair viva dali - mas a gaiola, no caso dela, era muito maior do que apenas aquele porão. A gaiola dela era também Joe. Os dois viveriam de pura manipulação, Beck fingindo que o amava e o compreendia, e Joe fazendo-a se sentir uma donzela em perigo só para que pudesse salvá-la. De alguma forma, ele a mataria no fim das contas. O próprio Joe nunca saiu da jaula - ele era preso em sua própria obsessão.


Ao final da história, Joe deveria sair impune e, finalmente, encontrar o amor? Ou ele deveria ser responsável pelos seus crimes?

O fim da série não me chocou tanto. Era óbvio que Beck seria morta - ou dada como morta. Discutindo com uma colega recentemente, ela disse que achava que Beck não estava realmente morta. “Não ficou claro”, explicou. Em parte, concordo. Mas vejamos na segunda temporada. Eu acredito que as pessoas pagam por tudo aquilo que fazem e, uma hora, em alguma temporada, a casa dele vai cair.

Tudo indica que uma hora as coisas vão se revelar. Muitas pontas ficaram soltas e, como eu disse acima, Joe não me pareceu a pessoa mais cuidadosa do mundo. É como se ele quisesse, de alguma forma, ser reconhecido por isso em algum momento. O que explica os souvenirs que ele guardava. (No livro e série Mindhunter, eles falam um pouco sobre o comportamento de serial killers e como eles gostam de guardar “prêmios” de suas vítimas, como lembrança.) Joe deve, sim, ser preso. É claro que seria um final interessante ele simplesmente se safar com isso, mas a mensagem da série sairia errada. Homens que fazem o que fazem com mulheres, homens como ele, precisam ser punidos. Se ele se safar, só dará um exemplo de como a impunidade sobre eles é grande - o que não é mentira. Vemos casos diários disso, mas a produção audiovisual tem como um dos objetivos educar através da arte.



O final do livro é diferente do final da série. Na temporada que está vindo por aí, os roteiristas terão de explicar a sobrevivência de Candace de forma boa o suficiente para que justifique a continuação. É importante que saibam construir as temporadas seguintes para que não se torne um replay de conteúdo mal feito como aconteceu com outras séries da Netflix, como 13 Reasons Why. Até agora pouco foi dito, mas é esperado que o final seja, claramente, com Joe Goldberg atrás das grades. Ou, até mesmo, morto. 

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