1910: O grito por equidade que transcende a barreira do tempo
Em um cenário ainda dominado por homens, cinco vozes femininas usam críticas duras ao patriarcado, representatividade e um apelo em prol da união entre as mulheres para exaltar sua luta e denunciar os abusos sofridos ao longo dos anos
*Por Francisca Pires
A WRM (World Rap Music) escolheu o Dia Internacional da Mulher para lançar a denominada “música do ano”. Estrelados pelas cantoras Thai Flow, Nabrisa, Lourena, Azzy e Gabz, os versos detalham grandes acontecimentos dentro da luta feminina, como a primeira Conferência Internacional de Mulheres, em 1910, e o incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist, em 1911.
Antes mesmo de iniciar sua contribuição, Thai Flow faz uma importante crítica ao discurso que muitas vezes é disseminado pelas grandes massas. Clamar por igualdade resulta em uma idéia contrária à valorização das diferenças individuais de cada ser. O ideal é que existam os mesmos direitos, respeitando os aspectos que englobam a individualidade de cada um, até porque somos todos, por essência, diferentes uns dos outros:
Toda luta que preze a igualdade tende ao fracassoNão somos iguais, somos únicosSeres em evolução, entendamEstamos aqui pela equidadeJustiça, queremos justiça, nada mais
Dirigido por Diego Esteves, o audiovisual do single é composto por um cenário de época que conta com a presença de diversas mulheres com trajes antigos segurando cartazes de protesto: estes pediam, dentre outras coisas, respeito e melhores condições de trabalho. Nas cenas pode-se destacar também a presença de crianças, todas meninas, e de takes envolvendo fogo, fazendo referência às mulheres que foram queimadas na Inquisição sob suspeita de bruxaria. Uma das cantoras, Azzy, tem como parte de sua caracterização queimaduras no corpo e rosto, e todas elas vestem-se como operárias que viveram em meados de 1910 e 1911.
Ainda que tudo seja trabalhado no contexto dessa época, Thai exclama nos seus primeiros versos “Cês mataram a menina, agora vão ter que me ouvir”, enquanto aparece colando um cartaz com o rosto de Marielle Franco, vereadora do PSOL brutalmente assassinada no ano passado. Na sequência, a rapper é surpreendida por um homem que a repreende e retira o cartaz da parede com violência, demonstrando a intolerância vivida nos dias de hoje. A letra segue criticando a exploração sexual de mulheres no âmbito da pornografia e prostituição, homenageia Dandara e sua luta junto a Zumbi e, por fim, critica o que Thai denomina de auto-sabotagem, fazendo menção à competição feminina que é estimulada anos a fio pela sociedade patriarcal.
Os versos usam constantemente a palavra “fogo” para se referir à forma com que a sociedade julga e condena o direito de a mulher ser dona do próprio corpo e de suas escolhas. A letra o tempo todo evidencia que os comportamentos que matavam mulheres ontem são os mesmos que as matam diariamente hoje, mesmo tanto tempo depois. Nabrisa dá seguimento à música, exaltando a importância da liberdade de traçar seu próprio destino e lamentando os episódios em que teve sua inocência roubada por causa de abusos, bem como todas as vezes que foi subjugada por ser mulher.
Ela ressalta também a importância da representatividade existente hoje, na qual meninas cada vez mais novas podem se espelhar, buscando dentro de si forças para rebater tudo que é ensinado pela nossa sociedade patriarcal acerca do que é “ser uma mulher”, afim de encarar de frente o que é imposto pelo sistema.
Muitas foram chamadas, só que eu fui escolhidaPra amar um povo vazio que odeia o amorEntão vai, me chame de piranha por ter livre arbítrioSei que me querem caladaMeus erros me jogaram no fundo do poçoMas como Levi levitei e quando levantei foi pra ser bem mais fodaDinheiro nenhum pagará minha eternidade, minha liberdadeNa roda eu vi uma garotinha de oitos anos em mim se espelharEu vim lá de Campo Grande, por isso minha alma é grandeIsso já é o bastante pra ela nunca se esquecer, de eu me eternizar
Lourena, por sua vez, usa seu espaço de fala para deixar claro tudo o que não pode mais ser tolerado nos dias de hoje. Afirmando que “Meu corpo, minhas regras, não é brincadeira, não é brincadeira”, ela encoraja todas as mulheres a se desfazer de suas amarras e a persistir na luta. Não se deixar abater pelas dificuldades impostas pelo machismo e encarar a repressão com coragem, segundo seus versos, é a peça-chave para que o movimento se torne cada vez mais forte, gerando mais e mais conquistas.
Eu vi a luz em meio à escuridãoOnde não havia amor, enxerguei a soluçãoEu vi a luz em meio à escuridãoOnde não havia amor, enxerguei a soluçãoHey, como se fosse em 1910Quebro a corrente dos pés e continuo a voarE quem diria que em um momento eu seria inspiração pra quem queria um dia voltar a sonhar? (...)Não adianta tacar fogo porque eu já taquei
Na sequência das cenas, com queimaduras no rosto e corpo, Azzy surge em meio às chamas com uma criança no colo, representando a resistência da mulher e mãe. Sua letra exala resiliência, coragem e força. Um dos aspectos mais importantes ressaltados por ela é o diálogo entre o movimento feminista atual e toda a resistência que foi necessária no passado para que hoje as mulheres pudessem exprimir suas opiniões e lutar de forma mais concisa em prol de seus direitos.
Pode tacar fogo, eu resistoEu insisto, eu sou chamaPode tacar fogo, acredita em mimVoltamos de novo com sorriso no rostoCom sangue nos olhos, linhas no meu bolsoAnos-luz à frente, pronta pra dar o trocoRessurgi das cinzas, reconheci meu corpo
Toda representatividade da mulher negra é saudada no verso “E a esperança é uma mulher preta, cantando os raps mais pesados do planeta”, da cantora Gabz, responsável por finalizar, brilhantemente, a música. No decorrer de sua participação, ela faz menção a figuras ligadas à Bíblia, ao candomblé e até mesmo à mitologia grega - tudo isso para caracterizar a força das mulheres a partir de toda essa pluralidade de crenças existente no nosso país. Assim como nos versos que a antecederam, Gabz faz duras críticas à exploração da mulher, ao machismo como um todo e ao sistema que legitima a misoginia durante todos esses anos.
Eu vejo tragédias em déjà viEu sou o resultado das coisas que eu viviEu tô expondo minhas feridas como Frida, eu sofriMinhas heroínas morrem de amar, mas eu sobreviviÉ de doer ver eles ficar igual a quem fez a própria mãe sofrerA vida é um ciclo vicioso tão clichêE a esperança é uma mulher preta, cantando os raps mais pesados do planeta
Traçando uma linha do tempo para ilustrar a incansável luta das mulheres pelo direito de viver com dignidade, o lançamento que não poderia ter escolhido data mais pertinente, traz esperança em tempos sombrios de intolerância e misoginia. Usar jovens mulheres que estão construindo suas carreiras em um mercado ainda tão machista como o do rap, para dar voz a todas aquelas que morreram na busca pelo que se tem hoje é um grande ato de sororidade e prova que, apesar de todas as adversidades, é possível estimular as novas gerações a lutarem pelos seus direitos e ideais. Em tempos de silenciamentos brutais, 1910 surge como um grito de protesto que abraça as almas daquelas que ainda lutam por aqui e das que já não podem mais lutar.
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