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O Rap mandou avisar

Com um flow incomum a um rap de protesto, a música “Eu Avisei”, lançamento recente em um canal de rap nacional, soma 36 mil likes e traz consigo versos fortes que retratam questões de gênero, machismo e violência nas periferias


Por Francisca Pires

Da esquerda para a direita: Azzy, Luccas Carlos, Lucas Boombeat e Bivolt.

O canal PineappleStorm TV, que soma mais de três milhões de inscritos no YouTube, lançou no dia 8 de novembro uma música de protesto interpretado pelos cantores Azzy, Lucas Boombeat, Bivolt e Luccas Carlos. Nomes já famosos no cenário do rap nacional e no próprio canal. O intuito dos versos é criticar questões comuns na nossa sociedade como o patriarcado, ação antiética da polícia nas periferias, violência, preconceito de gênero, dentre outras inquietações que geram revolta.

A primeira parte da música, interpretada pelo rapper Lucas Boombeat, já demonstra nas primeiras linhas que, apesar do ritmo dançante e leve, a mensagem proferida nos versos é construída de forma objetiva para provocar o ouvinte e levá-lo à uma reflexão acerca de como se lida com as questões de gênero dentro da nossa sociedade. O cantor, que há alguns meses sofreu ataques homofóbicos após a Pinneaple anunciar lançamentos envolvendo seu nome, usa a letra da música para convidar quem o discriminou a ver o fruto do seu trabalho:

Eu nasci bicha, até no espírito
Se te incomoda o adjetivo, não reclama
Foi tu que me deu
Tamo na lista dos amiguinhos
Que cê adora passar pano
Que riu da minha cara e agora sou eu
No beat, no aviso e na voz
Esses rapper pela-saco vai ter que escutar

Além de desabafar sobre as dificuldades que enfrentou por ser homoafetivo, Lucas dá continuidade a letra relatando que seu objetivo é representar todos os LGBTs; uma vez que a comunidade ainda é muito discriminada no cenário do rap, o que é muito grave, pois essa manifestação artística sempre cumpriu função de dar voz às minorias oprimidas. Os versos também citam o caso do jovem Itarbely, morto pela própria mãe em São Paulo no ano de 2017, fazendo assim uma referência à todos aqueles que tiveram suas vidas ceifadas pela intolerância de gênero:

Tô ostentando amor pra todos viado
E Itarbelly presente pela própria mãe queimado
Tentam, tentam, tentam me tirar daqui
Mas esquecem que eu não sou daqui, nunca estive aqui
Sei que o que cês quer é motivo pra sorrir, não insiste, a vida é triste
Aguenta o tranco, sempre esteja pronto pra sentir
Ou fugir, cidade sem cor

Meu rap, função: Colorir
Traz reflexão contra os que vão te engolir
Medo em posto, pago imposto pra CQ
Se não tem desgosto, não tem pão e circo pra se extrair

Trazendo a primeira voz feminina do rap, a cantora Bivolt coloca no seu flow o terror vivido dentro das comunidades nas quais há uma atuação mais intensa da polícia. Nos versos, ela relata que é muito comum a prática do abuso de poder, desse modo, muitos inocentes acabam sofrendo violência por parte daqueles que deveriam protegê-los. A incredibilidade da PM, por sua vez, gera ainda mais medo nos moradores que, no fogo cruzado entre justiça e tráfico, acabam morrendo de uma forma ou de outra. Bivolt também usa de metáforas para retratar aqueles que apoiam intervenção militar, afirmando que a alienação propiciada pelos grandes meios de comunicação, o próprio interesse ou simplesmente o fato de não serem diretamente atingidos pela violência, faz com que as camadas mais ricas da sociedade apoiem táticas extremistas do governo e disseminem discursos de ódio que no fundo não têm nada construtivo para transmitirem.

Eu vejo rodar tiro pra c*, a Força Tática dos COP
Inimigo número um dos pobre,
Força bruta sem nenhuma tática
Assim é a prática do abuso do poder

Vejo um soldadinho até lá em cima em golpes a temer
Lobos são inofensivos, castrados pela TV
Com seu flow cuspido sem algo a dizer

Nesse mesmo contexto de violência dentro das comunidades, o rapper Luccas Carlos busca em sua parte homenagear todos os jovens periféricos que foram mortos. Dentro do seu beat, ele relata como funcionam os dias daqueles que têm inseridos na sua rotina os barulhos de tiro, gritos e choros de desespero. Além disso, assim como faz Mano Brown no famoso rap “Nego drama”, Luccas relata que mesmo saindo da comunidade, adquirindo peças caras e não tendo mais que lidar de perto com a violência, os traumas vividos pelos moradores os perseguem onde quer que eles vão. Na letra, ele afirma que “está pronto para viver tudo de novo”, ou seja, ao vivenciar tudo que essas pessoas vivenciam, elas tornam-se resistentes ao medo. Nas favelas, as pessoas convivem com o ápice do seu medo até se tornarem indiferentes a ele - situação a qual nenhum ser humano deveria ser submetido.

Corpo são, mente insana
Meu bairro continua perigoso
Eu tô pronto pra viver tudo de novo
Pra quem vem de onde eu vim, isso tudo é pouco
Vários par de tênis, corrente de ouro
Quem me assustou mais com barulho de tiro
Aqui perto no Turano a bala tá comendo
Os cara já avisou que é pra não dar vacilo
Eu sempre vou lembrar dos meus manos
Eu sempre vou falar dos meus manos
Eu continuo aqui pelos meus manos
E se você tá contra nós, deve tar brincando
Eu elevo o nível do jogo
Mente de munição pra quem quiser fogo, em
Não desacredita não, neném
Cê não botou fé, olha agora quem tá bem, nós!

Por última, mas longe de ser a menos importante, a rapper Azzy interpreta os versos mais “pesados” na opinião do grande público. Trazendo a frase que intitula a música, sua participação fala sobre o combate incisivo à cultura machista, mostrando que as mulheres através do seu trabalho podem sim fazer sucesso, manter seus bens materiais e até um alto padrão de vida. Ademais, os versos rebatem possíveis críticas e demostram até um posicionamento mais pessoal, no qual Azzy defende tudo que conquistou e afirma que as conquistas dos outros devem ser respeitadas e não questionadas, seja pelo seu sexo, orientação sexual ou origem.

Eles não sabem o que eu sei
Falam meu nome, a rua é minha, eu avisei
Esquece meu nome e não pisa onde eu pisei
Bolada em meu nome, na pista eu nunca errei
Pra não perder meu nome, olha só onde eu cheguei
Tamo escutando nos fone quantos palcos eu pulei
Eles gritaram meu nome, dizem que vidas salvei
Vai além de Money
Meu sucesso incomoda gente que eu nem sei o nome
Ligam pro meu telefone pra eu assassinar machista
Penélope Charmosa matou Dick Vigarista

...

Indo pra Dubai, eu tô pagando tudo à vista
Com as melhores poses e diamantinas
Acostume sua vista, ver minha cara na revista

E foi com esses versos construídos através de críticas afiadas, ritmo dançante e letra reflexiva que o Rap mandou avisar para toda sociedade que seu cenário está cada vez mais democrático e pronto para problematizar questões antes silenciadas. Ainda que muitos tabus precisem ser quebrados, a inovação das músicas antes limitadas a violência, armas, drogas e racismo, hoje abre portas para novas discussões pertinentes à nossa sociedade. Sem deixar, é claro, de trazer a característica original de retratar temas comuns à zona periférica. Com a inserção de mulheres e gays, o rap nacional tende a trazer uma representatividade expressiva para todos os jovens; essa ideia, articulada da maneira correta como está sendo, não pode resultar em outro caminho que não o sucesso.

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