“Seremos os mais felizes ou os mais infelizes dos seres humanos” – o romance trágico de Anna Kariênina e Conde Vrónski, de Liev Tolstói
Por Ana Flávia Sanção
Dentre os grandes romances clássicos, Anna Kariênina (ou Anna Karenina), do escritor Liev Tolstói, marcou a revolução industrial e as mudanças sociais russas da segunda metade do século XIX. Com um estilo realista, o primeiro romance, e a principal obra do russo, traz a história de amor adúltera entre Anna Kariênina e Conde Vrónski.
Dentre os grandes romances clássicos, Anna Kariênina (ou Anna Karenina), do escritor Liev Tolstói, marcou a revolução industrial e as mudanças sociais russas da segunda metade do século XIX. Com um estilo realista, o primeiro romance, e a principal obra do russo, traz a história de amor adúltera entre Anna Kariênina e Conde Vrónski.
O enredo dá início com a descoberta da traição do irmão de Anna, Stiva. Anna é convidada por ele para ir à Moscou e convencer Dolly, sua esposa, a perdoá-lo pelo bem da família. Ela então embarca e, na estação, tem seu primeiro contato com Conde Vrónski, um importante militar do governo russo. A vida dos dois na capital se entrelaçam, e eles embarcam num romance conturbado, cheio de culpa, remorso, ressentimento, exclusão e escândalo.
O affair passa de pequeno capricho à total quebra de parâmetro social aos poucos. Sendo, os dois, parte da alta sociedade e aristocracia russa, Anna e Vrónski se tornam objeto de fofoca e intriga – culminando na separação caótica de Anna e seu marido, Aleksei. A partir daí Anna tem de lidar com a mancha de sua reputação e o novo relacionamento que não é aceito socialmente.
Escrito na década de 70 do século XIX, o livro, dividido em oito partes, vai narrar a história dos dois por diversas visões diferentes além de si próprios. São, pelo menos, ao longo do livro, 10 narradores diferentes. Todos estão ligados diretamente ou indiretamente ao casal principal. Essa quantidade de narradores faz com que histórias paralelas, influenciadas, porém não totalmente envolvidas com o enredo principal, sejam contadas. É o caso de Liévin e Kitty. Liévin é um dono de terras da parte rural que se apaixonada perdidamente pela princesa Katierina Cherbátskaia que, aos seus 18 anos, está apaixonada pelo Conde Vrónski. Conforme a narrativa avança, as vidas de Liévin, Kitty, Anna e Vrónski se entrelaçam e se afastam numa complexidade de sentimentos e relações.
Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e de luz
Essencialmente descritivo, Anna Karenina é um livro para aqueles que tem paciência com minúcias e leitura lenta. Mas não é um defeito – longe disso, o estilo detalhista de Tolstói cria o universo russo nas suas últimas décadas czaristas com personagens distintos, de personalidades diferentes e pensamentos tão profundos que chegam a ser contagiosamente angustiantes.
Pelos altos e baixos, o realismo pode ser sentido num quê meio negativo, que traz ao leitor a realidade cruel e questionamentos existencialistas por parte da maioria dos personagens. Destacando principalmente Liévin e Anna, os dois percorrem a história sempre com sentimentos lúgubres que vêm e voltam, ora cogitando o valor da vida, ora o da morte, ora o da existência por si só.
É esse realismo que leva à evolução dos personagens no decorrer do tempo. Aleksei, marido de Anna, é um dos personagens que mais se vê essa mudança. De início sério e frio, passa para um homem desesperado e angustiado, depois um piedoso e compreensivo marido traído e, por fim, um ressentido extremista religioso que vive para seguir às ordens de uma mulher largada pelo marido.
De fato, o momento em que Anna Karenina foi escrito também é de extrema importância para sua relevância social. No livro, Tolstói retrata as mudanças sociais ocorridas na sociedade russa, como Reforma Emancipadora (fim do trabalho servil dos camponeses), as eleições para o governo local, os direitos das mulheres à educação e a falsa moralidade criada por um estilo de vida muitas vezes hipócrita, o movimento pan-eslavista, entre outros. Algumas vezes na obra, cita-se igualmente o início do burburinho causado pelo manifesto comunista, que em 40 anos seria a causa da Revolução Russa de 1917.
Dentre os vários personagens centrais da história, vale a caracterização dos cinco principais: Anna Kariênina, Aleksei Kariênin, Aleksei Vrónski, Katierina Cherbátskaia e Konstantin Liévin.
Anna Kariênina
Anna aparece como secundária no início do livro, indo ajudar seu irmão. Aos poucos, a história se enlaça com seu dia-a-dia, o amor pelo filho e o casamento frio e infeliz. Considerada a mais bela personagem de todo o livro, Anna carrega com si uma melancolia feroz que, quando por um lado a faz cair nos braços de Vrónski em busca da felicidade eterna, torno-a depressiva, infeliz, orgulhosa e histérica no fim da história. A evolução de Anna ocorre segundo as etapas de sua vida, consequência da sua escolha ousada e polêmica.
Se a natureza inteira está a tal ponto degradada e pervertida que a própria perdição parece a ela ser a salvação, o que se há de fazer?
Nem heroína nem vilã, Anna é, na verdade, o resultado de uma junção de acontecimentos infelizes e decisões desesperadas em busca da felicidade. Seu principal defeito é a dependência emocional que desenvolve com o passar do tempo. Ela passa a ver Vrónski como sua única saída e felicidade, a única razão de existência. Num mundo no qual ela não é mais aceita por aqueles que um dia disseram amá-la, não é difícil entender porque cada vez mais Anna, tão feroz em suas decisões inicialmente, se torna volúvel e temperamental, definhando aos poucos devido a uma situação de beco sem saída.
Aleksei Kariênin
Pragmático, frio e distante. Aleksei é um homem do governo, obstinado e que busca ascensão social e na carreira pública a todo custo. Consegue ser mais orgulhoso que a própria escolha, mas é, ao mesmo tempo, fraco em seu próprio julgamento. Ao perceber a traição de Anna, de início a decisão de Aleksei é simplesmente proibi-la de ter contato com Vrónski. Conforme a situação vai ficando cada vez mais insustentável, Aleksei se vê num confronto de interesses e decisões para tomar.
Não parece, no entanto, que Aleksei algum dia realmente amou Anna. O casamento foi arranjado às pressas quando Anna ainda era muito jovem. A ideia do dever religioso e feminino é a causa da grande frustração e variação de opinião. Aleksei não sabe lidar com seu orgulho e honra feridos, muito menos como agir diante de uma mulher que não irá obedecê-lo ou seguir os preceitos sociais esperados. Com o tempo, sua índole facilmente influenciada faz com que sua opinião seja inconstante, terminando num fanático religioso.
Aleksei Vrónski
Vrónski é o típico canalha, garanhão e de lábia fácil. Ele leva uma vida leviana, regada a bebidas e conquistas, até conhecer Anna na estação de trem, em Moscou, quando vai pegar a mãe que vem de São Petersburgo visitá-lo. Já no primeiro contato, uma obsessão toma conta do conde, que passa a cortejar Anna a todo custo. Na primeira parte do livro, uma das personagens o caracteriza como “a sombra” de Anna Kariênina. Seu comportamento impróprio quebra o coração da jovem princesa Kitty que havia caído nos galanteios de Vrónski e esperava que, em seu baile de debutante, o militar a pedisse em casamento.
Vrónski é um romântico sedutor nato. Prepotente e arrogante, muitas vezes desafiando a condição de Anna de forma egoísta. Em benefício próprio, a convence a largar o marido para ter com ele uma vida fora dos padrões da sociedade aristocrata. É estranho ver como a paixão por Anna deixa Vrónski sem chão a ponto de largar tudo e destinar sua vida totalmente a ela. Ainda assim, o sufoco causado pelas mudanças temperamentais de Anna levam Vrónski a se tornar frio, distante, egoísta e calculista. Conforme avança, a questão do divórcio cada vez mais transforma o relacionamento dos dois em algo insustentável.
Katierina Cherbátskaia
Kitty é, provavelmente, a personagem mais inocente e ludibriável do enredo. Encantada por Vrónski e pela beleza e personalidade de Anna Kariênina, deposita nos dois uma quantidade de sentimentos e expectativas que são quase impossíveis de serem cumpridas. Ao saber do caso dos dois, Kitty adoece e precisa ir ao estrangeiro se tratar por várias semanas. Um dos grandes parâmetros a serem comparados com a sociedade atual é como alguém tão jovem, filha de aristocrata, pode se iludir tanto com uma corte de apenas algumas semanas, como aconteceu com ela e Vrónski.
Esse mesmo encanto cego a faz rejeitar Liévin quando ele faz sua primeira proposta de casamento. E é também as resoluções fracas e as epifanias que a fazem mudar de ideia e, numa segunda tentativa, aceitar o pedido de Liévin. Kitty, na verdade, é um ser ingênuo que aprende com os acontecimentos mais difíceis da vida a lidar com seus sentimentos. Característica que provavelmente veio de sua criação aristocrata, sempre protegida. Sua insegurança é o grande defeito que a torna sentimental, ciumenta e, muitas vezes, dramática ao extremo.
Era uma dessas coisas de que a pessoa sabe, mas que não consegue dizer nem a si mesma; enganar-se é terrível e vergonhoso demais
Konstantin Liévin
Liévin está sempre irritado com alguma coisa. Durante todas as 800 e poucas páginas do livro, a narrativa, muitas vezes maçante e cansativa, retrata um personagem perdido em si mesmo, que nunca está cem por cento satisfeito com aquilo que tem. Também possui uma grande tendência à dramaticidade – Liévin, após levar a negativa de Kitty, mergulha no trabalho braçal do campo, convencido de que não precisaria de mais nada nem de mais ninguém.
Em parte, a personalidade insegura e insatisfeita dele se encaixa com a de Kitty. Ambos, após se unirem, precisam lidar com o ciúme, a vida a dois, as novas responsabilidades. Muitas vezes, Liévin está irritado por não compreender o estilo de vida da esposa, completamente diferente do seu. Em outras, está preocupado por não ter com o que se ocupar. Quando não está pensando em nenhuma dessas opções, cria cenários imaginários de adultério da mulher e tem grandes crises de ciúme. E, apesar de ser benevolente e com uma capacidade de abnegação e de ajuda ao próximo enorme, não consegue encontrar razão em sua própria existência, fazendo com que sua narrativa seja carregada de negativismo e pensamentos e conclusões confusas sobre o real significado da vida.
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Anna Karenina, o filme
Em 2013, foi lançada a adaptação do clássico russo de Liev Tolstói, dirigida por Joe Wright. O elenco contou com grandes nomes do cinema como Keira Knightley (Anna Kariênina), Aaron Taylor-Johnson (Conde Vrónski), Jude Law (Aleksei Kariênin), Kelly Macdonald (Dolly Oblonsky), Matthew MacFadyen (Stiva Oblonsky), Domhnall Gleeson (Konstantin Liévin) e Alicia Vikander (Kitty Cherbátskaia).
O longa foi montado com cenários móveis, que mudavam em tempos ritmados, quase como coreografias, dentro de um único espaço de um grande teatro vazio. Foi indicado a muitos prêmios importantes, dentro deles o Globo de Ouro por Melhor Trilha Sonora e a seis indicações ao Oscar, duas por direção de arte, fotografia, trilha sonora e figura, categoria a qual levou o prêmio.
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