Precisamos falar sobre a Netflix
Por Letícia Medeiros
A batalha pela representatividade adequada é velha e árdua. Por sorte, a era digital ajuda na disseminação de ideias e na educação sobre desigualdades que ainda impactam o mundo, estimulando o reconhecimento de privilégios. O simples fato da Netflix produzir esse conteúdo é ótimo, mas não vamos esquecer de sermos consumidores críticos e exigir um tratamento igualitário na grade de programação.
Em tempos onde serviços de streaming estão cada vez mais em alta e
competem por espaço com a mídia televisiva tradicional, o conteúdo que produzem
é de certa forma um reflexo dos grupos demográficos que pretendem atrair. Há um
dinamismo maior em plataformas como a Netflix, que investe em suas próprias
produções e tem em sua grade séries com grande diversidade como Sense8, Orange Is The New Black e mais recentemente The Get Down e Dear White
People.
Produções como essas são grandes avanços
na indústria cinematográfica e do entretenimento; a cultura hegemônica que só
dava voz para personagens brancos agora tem que dar espaço para negros, latinos
e asiáticos. É hora de trazer esses personagens para o centro de suas próprias
histórias, e não mais reduzi-los a papéis de coadjuvantes, com narrativas rasas
e cheia de estereótipos.
Contudo, é importante lembrar que o
tratamento dado às produções também deve refletir essa mudança. É que quando a
graça é grande, o santo desconfia. E é necessário analisar as estratégias de
marketing utilizadas, que espelham não só necessidades de mercado, mas também o
real posicionamento da empresa.
A grande crítica a ser feita é que
há um desequilíbrio entre a maneira com que a Netflix promove conteúdo. Quando 13 Reasons Why foi liberada, ninguém
podia fugir do assunto, todo mundo estava vendo e comentando. Já quando cinco
episódios da primeira temporada de The Get
Down foram disponibilizados, ouviu-se alguma coisa sobre?
Há quem diga que desde a
disponibilização da primeira temporada, TGD era “sabotado”, já que sempre era
liberado quando muito conteúdo entrava na plataforma. E dessa vez não foi
diferente e seus novos episódios foram enviados ao mesmo tempo em que uma nova
série, Girl Boss, estreava. Série
essa que foi muito promovida nas timelines
do Twitter e Facebook.
No dia 25 de maio, a Netflix
anunciou o cancelamento de The Get Down.
A série, situada em Nova York, acompanhava jovens no final da década de 70 que
usavam o hip hop e disco como forma de expressão. Era uma
linda demonstração de como era a vida de pessoas de cor naquela época.
De acordo com o diretor Baz Luhrmann, o principal motivo para
fim da série foi a sua falta de disponibilidade. Em sua página do Facebook,
escreveu a seguinte mensagem: "Queridos fãs de The Get Down, eu queria falar com vocês de coração aberto. Quando
me pediram para encabeçar as coisas na série, eu tive de adiar o compromisso de
dirigir um filme por, pelo menos, dois anos. Esta exclusividade,
compreensivelmente, tornou-se uma questão para Netflix e Sony, que têm sido
grandes parceiras e apoiadoras da série. Fico muito triste em não poder me
dividir em dois e conseguir ficar disponível para as duas coisas. Quanto ao
futuro real do programa, o espírito de TGD e a história que começou a contar...
têm a sua própria vida. Aquela que vive hoje e continuará a ser contada em
algum lugar, de alguma forma, por causa de vocês, os fãs, e os adeptos”.
Em seu poema no vídeo acima, o
personagem Zeke Figuero fala sobre “leveling
the playing field”, uma expressão que significa dar a todos os mesmos
benefícios e oportunidades. É irônico quando se considera que a Netflix não fez
isso com a própria série.
Não há dúvidas de que a
disponibilidade do Luhrmann afetou o continuamento da produção mas para os fãs,
a empresa tem culpa por não ter promovido o conteúdo como deveria. No Twitter e
em outras plataformas sociais, fãs já tinham se reunido desde a primeira
temporada, através de campanhas como
#RenewTheGetDown para divulgar a série e impedir o seu cancelamento. A reação
nas redes depois da notícia ilustra bem essa percepção:
Outra série original que também
encontrou o mesmo fim foi Sense8,
cancelada no dia 1 de junho após a segunda temporada. De acordo com o diretor
de conteúdo da Netflix, Ted Sarandos,
ambas as séries tinham produções caríssimas - doze e nove milhões de dólares
por episódio respectivamente - e audiências que não correspondiam ao
investimento feito. Em conversa com Jerry Seinfeld na conferência Produced By realizada em Los Angeles,
Sarandos disse: “um programa grande e caro para um público menor é difícil de
fazer, mesmo que o nosso modelo faça isso funcionar por bastante tempo”.
Nesse sentido, entram os
questionamentos feitos por fãs em relação às estratégias de marketing
utilizadas, afinal o nível de divulgação influencia na audiência e também sobre
a necessidade de gastar tanto nas temporadas iniciais. Pela lógica do mercado,
o produto deve primeiro provar seu poder de mercabilidade e os investimentos
seguem de acordo com o que for apurado, o que não foi o caso.
A produção mais recente Cara Gente Branca segue no mesmo
caminho, pouco divulgada, trata fortemente sobre o tema do racismo. Nos Estados
Unidos, sua estreia foi uma polêmica que resultou em boicote à Netflix.
Usuários cancelaram suas contas alegando a promoção de “racismo reverso”.
Situações como essas reforçam a necessidade desse conteúdo ser produzido, visto
e entendido. Ah, e promovido também! Fica a dica.
Trailer de Cara Gente Branca:
A batalha pela representatividade adequada é velha e árdua. Por sorte, a era digital ajuda na disseminação de ideias e na educação sobre desigualdades que ainda impactam o mundo, estimulando o reconhecimento de privilégios. O simples fato da Netflix produzir esse conteúdo é ótimo, mas não vamos esquecer de sermos consumidores críticos e exigir um tratamento igualitário na grade de programação.
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