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Dez anos depois, outra greve dos roteiristas quase acontece

Entenda por que o sindicato estava pronto para uma paralização

Por Anna Vale, Germano Freitas e Hilda Vasconcelos
Cena da greve de 2007/ Fonte: Stephen Chernin/Getty
Na segunda-feira (24), ocorreu uma votação entre os membros do Sindicato dos Roteiristas da América (WGA, do inglês Writers Guild of America) que decidiu, com aproximadamente 96,3% de aprovação e recorde de participação dos membros, autorizar a paralização quando os seus contratos expirassem dia 1º de maio, caso nenhum acordo fosse atingido com os estúdios e produtores. Para o alívio de membros da indústria do entretenimento e expectadores, no entanto, um acordo foi firmado pouco depois da meia-noite de hoje (2), reporta o portal de notícias americano Vox.
As negociações foram conduzidas entre a WGA – seus dois braços, a WGA West e WGA East, representando respectivamente os roteiristas de rádio, televisão e cinema das costas oeste e leste dos Estados Unidos – e a Aliança de Produtores de Filmes e Televisão (AMPTP, do inglês Alliance of Motion Picture and Television Producers) – “a representante oficial da barganha coletiva da indústria do entretenimento”, negociando em nome de mais de 350 produtores de TV e filmes, entre grandes estúdios, canais de tv e produtores independentes. É responsabilidade deles negociar um contrato básico (“Minimum Basic Agreement”) a cada três anos que determina o tratamento e compensação dos roteiristas, e foi a dificuldade na renovação deste que quase levou à eclosão de uma greve no dia 2 de maio.
Para entender como se chegou a esse ponto, é preciso analisar as demandas feitas pela WGA, explicadas minuciosamente em um boletim endereçado aos seus membros, mas que podem ser resumidas em três pontos principais: o declínio nos salários dos roteiristas televisivos; contribuição para o plano de saúde do sindicato; mudanças nos desenvolvimentos de roteiros.
Pagamento menor, para a mesma quantidade de trabalho
O termo “Peak TV” serve para denominar o momento atual da indústria, quando mais televisão e de melhor qualidade está sendo produzida que nunca, podendo ser consumida a qualquer momento e em qualquer lugar, e o mercado está aberto para quem trabalha na área. Apesar disso, os roteiristas estão vendo sua renda cair.
Isso porque, com o intuito de produzir conteúdo televisivo de melhor qualidade, as temporadas tradicionais foram reduzidas de uma média de 22 a 24 episódios para 10 a 13, o que é melhor criativamente, mas financeiramente, corta os lucros dos roteiristas que acabam por ganhar menos por temporada, apesar de investirem a mesma quantidade de trabalho; os residuais recebidos por episódios repetidos deveriam compensar por essa queda, mas eles também estão em declínio com a produção constante de conteúdo novo. Além disso, cláusulas de exclusividade nos contratos podem privá-los de trabalhar em mais de uma série de cada vez, o que os tira do mercado efetivamente por ao menos um ano.
Um plano de saúde próprio, mas quase falido
Uma das vantagens de um roteirista ser sindicalizado seria o plano de saúde oferecido pela WGA, que é autocontido e sem parcerias com qualquer empresa, ou seja, depende dos membros do sindicato para se manter funcionando. De cada contracheque, 9.5% deve ir para o fundo beneficiário do plano, sendo que os estúdios geralmente cobrem procedimentos mais caros.
Partindo desse princípio, o plano do Sindicato deveria ser um dos melhores que um trabalhador poderia receber, mas com o crescente custo da assistência médica nos Estados Unidos e a baixa nos salários dos roteiristas, a tendência é que o fundo logo fique sem dinheiro – de fato, projeções feitas pela WGA apontam que logo chegará a uma dívida de $145 milhões.
Nas palavras do Sindicato: “nessa negociação, não buscamos um plano de saúde melhor, apenas financeiramente responsável”.
Trabalhando de graça e demais
Pelos acordos já firmados pela WGA, é proibido que os roteiristas trabalhem de graça, sendo estipulados salários mínimos a serem pagos para cada etapa do desenvolvimento de um roteiro. No entanto, esse modelo tem sido trocado por “acordos de uma etapa”, o que acaba pressionando pela realização de qualquer trabalho extra (reescritas, rascunhos, edições, etc.) sem a devida compensação, além de resultar em roteiros de baixa qualidade.
Os esforços para evitar a greve eram grandes por parte de ambos, uma vez que a paralização efetiva da indústria televisiva e cinematográfica em um momento tão próspero não beneficiaria ninguém. A revista americana Variety reportava pessimismo de envolvidos dos dois lados do debate sobre um acordo, apenas duas horas antes do fim do prazo estipulado. Mas, depois de sete semanas de inquietação em Hollywood, um acordo foi firmado.
Greve de 2007
Em novembro desse ano completará uma década da eclosão da última greve dos roteiristas americanos e, uma vez que Hollywood esteve às vésperas de outra, é pertinente lembrar o que se passou.
Com duração de 14 semanas e 2 dias (100 dias, no total), a greve de 2007-2008 foi apenas a terceira maior da história da WGA, tendo as duas anteriores durado cerca de seis meses. As demandas variavam entre residuais da distribuição de DVDs e jurisdição sobre reality shows e animações, mas as negociações para ambas foram deixadas de lado. Sua questão crucial foi a New Media (serviços de venda online e de streaming), com a intenção de evitar perdas por não regulamentar a distribuição por meio da internet – um acordo foi atingido para que os roteiristas recebam parte do lucro bruto das produções, com sua porcentagem variável de acordo com sua forma de distribuição (aluguel ou compra via download, streaming, etc.).
As perdas sofridas pela indústria do entretenimento foram estimadas entre 380 milhões e 2.1 bilhões de dólares, mas isso é só no âmbito econômico. Ainda há os efeitos sobre a produção de séries regulares (por exemplo, The Big Bang Theory, How I Met Your Mother, Two and a Half Men, Prison Break, House, Supernatural, etc.) e late night shows (por exemplo, The Daily Show with Jon Stewart, The Colbert Report, The Late Night with Conan O’Brien) que tiveram temporadas encurtadas, atrasadas ou entraram em hiato.
Os talk shows “Late Show With David Letterman” e “The Late Late Show With Craig Ferguson” tiveram suas atividades paralisadas, mas foi firmado um acordo pela Worldwide Pants, sua produtora, com a WGA e seus roteiristas retornaram ao trabalho antes do fim da greve.
Reações
Joss Whedon, roteirista, diretor e produtor / Fonte: Ethan Miller/Getty
Na comunidade de roteiristas, o consenso era favorável à paralisação – como a votação do dia 24, claramente mostrou – mas não só isso: ninguém queria a greve, no entanto, compreendiam que seria um mal necessário caso os estúdios não mudassem a postura, e estavam prontos para ir às ruas. O sentimento foi devidamente ecoado por Marc Bernadin, jornalista-que-virou-roteirista, em uma coluna escrita para o Hollywood Reporter sobre a possibilidade: "Eu estou com o WGA, embora meus joelhos estejam um pouco bambos. Felizmente, tenho um Sindicato em quem me apoiar”.

No Twitter, alguns membros da WGA não só expressaram suas opiniões, mas mudaram suas fotos de perfil para um "I STAND WITH THE WGA" (Eu estou com o WGA, em português) branco em um fundo azul para expressar seu apoio à causa. Joss Whedon, roteirista e diretor dos dois filmes dos Vingadores, por exemplo, também aderiu, tuítando: "WGA: Vote SIM na autorização da greve. A história do nosso país não pode ser os que tem tudo tirando dos que fazem tudo. Não quando nós ESCREVEMOS a história".

Atores como Barry Sloane, de Revenge e Noé (2014), e Emmy Rossum, de Shameless (US), também expressaram seu apoio, afirmando que eles não são nada sem os escritores.
O acordo firmado
Em um memorando oficial publicado na madrugada de hoje (2), a WGA anunciou o acordo provisório firmado com o AMPTP aos seus membros.
Sem a divulgação de muitos detalhes, que deverão ser revelados nos próximos dias, o memorando expõe o aumento dos salários mínimos por temporadas menores, assim como da contribuição dos estúdios para o plano de saúde que assegurará que ele permaneça financeiramente estável.  Além disso, pela primeira vez no contrato básico, proteção do emprego em licença maternidade/paternidade e uma definição de 2.4 semanas de trabalho por episódio, sendo que a extensão desse tempo requer pagamento adicional. Também foram expandidas proteções no que diz respeito à exclusividade.

O acordo deverá ser votado pelas lideranças das duas costas do sindicato para aprovação, então pelos seus membros para ratificação oficial, mas a validação do contrato é considerada certa. Por hora, os fãs de séries americanas podem respirar aliviados.

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